Depois de mais de um mês de intervenção (militar) no lugar conhecido como “cracolândia” na cidade de São Paulo, fica cada vez mais fácil reconhecer o que muitos especialistas da área de drogas já haviam previsto: este tipo de ação não passa de um trabalho paliativo.
Vejamos. Se o objetivo era impedir que várias pessoas ficassem usando crack indiscriminadamente na rua em plena luz do dia naquela região, sim, isto está sendo alcançado. Se o objetivo era prender pequenos traficantes e procurados da justiça, sim, também poderíamos dizer que a operação está obtendo algum êxito (a polícia declara que foram 183 pessoas detidas, sendo que 43 eram procuradas pela Justiça). Soma-se ainda a estes resultados a internação de 80 pessoas para “tratamento” (fonte: site da polícia militar de SP/operação centro legal).
Para a população leiga estes números chegam como prova do sucesso desta operação: a cracolândia acabou. Porém, se olharmos com um pouco mais de atenção, é possível perceber o contrário: a cracolândia não acabou, apenas foi pulverizada. Num rápido passeio pelo centro de SP encontramos os antigos habitantes da cracolândia agora espalhados por diversas ruas e alamedas. Obviamente o tráfico de drogas não acabou, nem diminuiu, apenas está sendo feito com mais cautela, nas partes mais escuras da cidade, um pouco mais longe da nossa ofuscada visão.
Qualquer pessoa que tenha vivido o problema da dependência de drogas (pessoalmente ou na família) sabe que a internação não é a única e nem a melhor forma de resolver o problema. Claro que em alguns casos a internação é indicada, mas sempre como algo temporário e breve, parte de uma intervenção muito maior. Não se espantem se daqui a alguns meses encontrarmos grande parte das 80 pessoas que foram internadas (voluntária, involuntária ou compulsoriamente) na rua, usando crack novamente, já que estudos mostram que o índice de sucesso do tratamento via internação é abaixo dos 5%.
Toda esta operação não passa de uma cortina de fumaça. Por sinal, “Cortina de Fumaça” é o nome de um documentário que trata a questão do uso de drogas de forma bastante interessante, mostra com muita propriedade a real dimensão deste problema, revelando que caminhos fáceis e milagrosos não existem.
Para entendermos a complexa dimensão da problemática da dependência de drogas precisamos, antes de tudo, compreender uma questão vital, que ecoa sempre em cada um de nós: o que me possibilita viver e continuar vivendo a minha vida? Ou ainda mais especificamente: o que faz a minha vida ser digna de ser vivida?
A maior dificuldade desta pergunta é que a resposta deve ser construída singularmente. Cada um de nós, ao longo da nossa história, vem elaborando um sentido singular para a vida, um sentido que faz com que todas as manhãs cada um acorde e levante da cama, que continue a viver e não desista apesar de todas as adversidades. Isto quer dizer que o ser humano é vulnerável e, mais importante, que temos consciência disto.
Enquanto acharmos que podemos dar ou construir para o outro o sentido de sua vida continuaremos a fracassar no tratamento da dependência de drogas. Basicamente é isto que é feito quando uma pessoa é internada: ela é retirada da sua vida por um período. Neste tempo leva uma vida que não é a sua, depois sai da internação e volta para a mesma vida, para o mesmo sentido. Não é de se estranhar que a maioria volte para a dependência de drogas.
O que é possível fazer verdadeiramente é ajudar o outro a construir o seu projeto de vida, um projeto que tenha um sentido próprio. Infelizmente, na prática, isto é algo extremamente difícil de desenvolver. Em primeiro lugar é a pessoa, ela mesma, que tem que querer rever a sua vida. Se não for ela a pessoa mais interessada em refazer o sentido de sua vida pouco podemos fazer. Isto não quer dizer que precisamos ficar esperando passivamente esta vontade brotar no outro. Com estas pessoas o trabalho inicial é de sensibilização para a sua atual situação, na direção de ajudá-las a refletir sobre o modo como estão vivendo, se é deste modo que desejam viver realmente.
Fica evidente que este modo de lidar com a dependência de drogas requer tempo e paciência, não adianta buscar fórmulas mágicas. Neste primeiro momento o mais indicado são as ações de Redução de Danos. Este tipo de intervenção trabalha cara a cara com os usuários de drogas, no seu dia-a-dia, estabelecendo em primeiro lugar uma relação balizada na confiança e respeito. Aqui vale lembrar o óbvio: geralmente ouvimos e consideramos mais pessoas em quem temos confiança e respeito.
É muito grave constatar que na operação “centro legal”, desenvolvida na cracolândia, a primeira instituição governamental a chegar foi a polícia. Forçoso é admitir que esta intervenção não passa de uma ação higienista, preconizando a exclusão como forma de cuidado. Ao “resolver” o problema desta maneira o governo está regredindo no tempo, já que ignora todo o conhecimento produzido e defendido pela Reforma Psiquiátrica iniciada nos anos 1980.
Paralelos à intervenção de Redução de Danos é fundamental termos outros aparelhos de saúde prontos para receber os usuários que quiserem buscar alternativas para a sua vida. No Brasil contamos com o SUS, que integra vários serviços: Hospitais Gerais, Unidades Básicas de Saúde, CAPS (I, II, III, Álcool e Drogas), consultórios de rua, casas de acolhimento.
Nos quase vinte anos de existência, o SUS nunca foi implementado na sua totalidade e o serviço funciona de modo precário. Apesar disso, por absurdo que possa parecer, o modelo do SUS é referência mundial em termos de saúde pública. Diante deste mau funcionamento, torna-se fácil não acreditar no serviço público e buscar na rede privada a solução. Como exemplo, temos a atual decisão governamental de ceder verbas públicas para as comunidades terapêuticas. Não precisamos de mais comunidades terapêuticas precisamos que o SUS funcione plenamente.
Lidar com a questão do uso de drogas é um grande desafio. Arrisco-me a dizer que nunca vamos acabar com o consumo de drogas, o que podemos alcançar é aprender a lidar com esta questão com maior dignidade, sempre respeitando os direitos humanos.
Enfim, não precisamos inventar a roda, precisamos fazê-la rodar!!!
* Professor-doutor do Curso de Psicologia da PUC-SP, presidente da ABRAMD (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas).